segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Condição masculina é desconstruída...

Sérgio Lizias é psicólogo clínico, doutorando em Educação e professor da Universidade Federal de Goiás.

O imperativo "seja homem!" continua a ecoar no imaginário masculino e suscita inúmeros debates e questionamentos A condição humana na contemporaneidade encosta o homem contra o muro da necessidade de desvelar sua condição masculina e, ao mesmo tempo, empurra-o no abismo da impossibilidade de encontrá-la. Diante de tal argumento, o psicólogo clínico Sérgio Lizias Rocha considera que este seja o maior conflito vivido hoje pelo homem. Essa temática já suscitou a realização de worshops terapêuticos, nos quais grupos heterogêneos, formados exclusivamente por homens (de 20 a 60 anos), discutiram as mudanças em curso à luz da Gestalt-terapia. Lizias espera dar continuidade a esta experiência iniciada em Goiânia, agora em Fortaleza, juntamente com João Victor Maia, psicólogo clínico que coordena o Instituto Gestalt Ceará. No dia dedicado aos pais, confira a entrevista concedida ao Viva pelo conceituado estudioso da mente masculina. Diante da desestabilização nas representações do gênero masculino contemporâneo, emerge a questão "o que é ser homem na atualidade".Sim, essa é exatamente a questão central que percebo também. Na realidade a problemática atual das questões de gênero afeta tanto a condição masculina quanto a feminina com um só golpe. O que é homem e o que é mulher se constitui em um enigma que só agora está clamando para ser decifrado. Antes ser homem e ser mulher não precisava de nenhum questionamento. Suas identidades estavam estabilizadas, isto é, seus lugares identitários estavam intimamente associados através de funções e papéis bem delineados para cada um dos gêneros tanto na sociedade como na família. Foram exatamente as novas representações de gênero, principalmente do "ser mulher", que colocou o homem na necessidade de encontrar uma nova configuração representativa para ele. Simone de Beauvoir denuncia em meados dos anos 60 com a publicação do livro " segundo sexo: Não se nasce mulher, torna-se mulher". Beauvoir com uma perspectiva existencial mostra que não há essência feminina; "Ser mulher" é uma construção histórico-social. Da mesma maneira, as construções sociais que foram forjadas pela cultura e pela historia e que nos fizeram acreditar no que seria o homem, não se mantêm mais a partir dos atributos convencionados para ele. A questão é que não há nenhuma identidade masculina a ser alcançada. É tudo um jogo de representações ensaiado várias vezes e insuflado pelos ventos da tradição. A representação do que é ser homem na atualidade está, todavia, mais vazia do que a representação do que é ser mulher (e isto não quer dizer que não haja toda uma problemática que também grassa no seio da condição feminina). Por exemplo, ser mulher hoje é parir, cuidar de filhos e ainda trabalhar só ai já há toda uma complexidade em dar conta do mundo da rua e ainda cuidar de filhos e dar atenção a sua relação afetiva. Como se dá a problemática do vazio de representação?É que o homem tinha no trabalho sua principal fonte de referência de identidade. Ao perceber que o trabalho não sustenta mais a sua condição masculina o que é ser homem caiu no vazio. Como ser um cavalheiro sem dinheiro? Como ser um homem honrado sem trabalho? Como ser um provedor sem carteira de trabalho? Tire o trabalho do homem e o que sobra dele não fica muita coisa. Mas o homem vem, aos poucos, compreendendo que sua identidade não se sustenta apenas pelo trabalho. São aqueles raros homens que se desconstroem e se abrem para novas possibilidades de vivencias;cuidam dos filhos, fazem tranquilamente serviços de casa sem ser hobby ou excentricidades; apoiam sua companheira, trabalham, se divertem, amam, choram, se arrependem, "brocham" sem se sentir inadequado, enfim, se abrem para novas formas de existir sem o peso do mandamento: "Seja homem!" Quais as cobranças as quais os homens são sujeitos hoje? Tais cobranças são históricas?Na realidade, como diz Bourdieu o homem vive no "ardiloso privilégio" de ser homem. O homem, na visão deste teórico, é também objeto da própria dominação masculina. O homem continua sendo cobrado para ser homem, mas não tem mais referências de como sê-lo. Toda uma tradição histórica baseada no mito fundador de subjetividades de gênero como é o caso do Mito do Éden, passando pelo sistema patriarcal e toda a dominação masculina tem sido desconstruída aos poucos. A tradição histórica que deu ao homem o lugar de patriarca, dominador, representante da família, etc não lhe dá mais referências (pelo menos como era antes) destituindo-o de um poder que por milênios ele exerceu no mundo, principalmente, no mundo ocidental. A cobrança que eu vejo é mais de ordem ontológica e antropológica. A condição humana contemporânea, pós-moderna encosta o homem contra o muro da necessidade de desvelar sua condição masculina e, ao mesmo tempo, empurra-o no abismo da impossibilidade de encontrá-la. Considero que este seja o conflito maior que ocorre na condição de ser homem de nossos tempos atuais. É correto dizer que o padrão de comportamento adotado pelo homem, baseado na masculinidade hegemônica, está relacionado ao comportamento do homem em relação ao processo saúde-doença?Para responder a essa pergunta eu preciso usar o referencial do arcabouço teórico da minha abordagem psicoterapêutica enquanto psicólogo clínico, ou seja, a Gestalt-terapia. Para os principais fundadores desta abordagem o critério de saúde é identificação com a multiplicidade de possibilidades de sentidos presentes no mundo; o critério de doença, ao contrario, é identificação com o ego, com a identidade, com o que nos legou a tradição e tentar conservá-la com a qualidade de maior resiliência possível. O homem saudável transita entre o mundo da casa, do cuidado com os filhos, trabalha, tem amigos, se diverte, diminui os preconceitos e se abre para novas formas de vivência de sua condição masculina. O caráter de uma identidade masculina hegemônica está se dissolvendo e conservar-se nela a qualquer custo é sinônimo de doença. E a doença aparece no pensamento, ou seja, os processos de subjetivação que foram construídos determinaram a existência de uma determinada essência e identidade tanto masculina como feminina. Tal compreensão não dá mais conta das imensas demandas do mundo contemporâneo como o diálogo com as diferenças, inclusão, transformação social. Permanecer num pensamento essencialista é reproduzir preconceitos, estereótipos, repressões e, por desdobramento, tentar manter uma série de instituições doentias que não atendem mais as necessidades de abertura para novas formas de existência no mundo contemporâneo.Diante dos fatos, qual a necessidade que o homem tem hoje de reservar um tempo para si, dialogar mais, observar a necessidade de desenvolver as relações interpessoais?O diálogo é fundamental. É o ponto de acordo, o ponto de consenso entre as diferenças. A tradição precisa dialogar com as novas formas de configurações de gênero do mundo contemporâneo. Por isso que nem dá para chegar para o homem empedernido por milênios de uma compreensão andro-cêntrica, heteronomartiva e falocêntrica do mundo e dizer-lhe para parar de ser assim como também não dá para deixar de ouvir o clamor das novas configurações da mulher e da evolução tecnológica e filosófica de um pensamento em mutação. O homem precisa dialogar. Falta, por exemplo, ao homem, um maior diálogo com os próprios homens. Aristóteles já dizia que "É o homem que engendra o próprio homem". Há homens que ainda têm sérias dificuldades de expressão e capacidade de demonstrar afeto e outros que ainda, sequer conseguem nomeá-la. O imperativo "Seja homem!" ainda ecoa no imaginário masculino. Em dois workshops exclusivos para homens que facilitei, eles já não queriam deixar aquele contato; nostalgia de um espaço de liberdade e aceitação, de perceber que andavam silenciados sem um fórum de debate sobre suas próprias condições existenciais. Conversamos sobre tudo: a necessidade de contato afetivo com seus pais, as cobranças das esposas, a incapacidade de cuidar da melhor maneira dos filhos, solidão, incompreensão, dificuldade de mudar, dificuldade de expressar sentimentos, de utilizar argumentos afetivos e não somente lógico-formais, etc. Até o famoso debate sobre a importância do tamanho do pênis surgiu de uma maneira leve e todos os temas trazidos à discussão transcorreram com muito humor, ao mesmo tempo, regados a um profundo respeito de todos quanto ao universo de sentidos de cada um. Quais as reais necessidades da criação de um espaço para as desconstruções?O tamanho das resistências sempre irá nos oferecer sinais para identificar quais são estes espaços. Por exemplo, na relação afetiva a mulher de hoje já não aceita o homem completamente tradicional. Isto é, para administrar os desejos, o sexo, o afeto, o tempo para a relação e muitos outros temas que ocorrem no interior da relação de um homem com a mulher de hoje requer um homem desconstruído. Para dar conta do universo político e social da necessária igualdade entre homens e mulheres em todas as instituições sociais requer um homem desconstruído. Para compreender o espaço de afirmação das inúmeras possibilidades de vivencias de gênero como o caso dos travestis, transexuais, bissexuais, lésbicas e homossexuais requer um homem desconstruído. Para cuidar da própria orientação heterossexual que o homem sempre se identificou com ela, requer um homem desconstruído. Para poder oferecer um cuidado mais afetivo e efetivo na educação dos seus filhos, requer um homem desconstruído. A desconstrução do que é ser homem hoje eclode como uma necessidade de resignificar os espaços da família, da sociedade e até na igreja, instituição que ainda mantém fortes padrões e atributos para o homem e para a mulher, mas que se apresenta revolvendo-se em busca de novas compreensões para as relações de gênero.

Fonte: Diario do nordeste