quinta-feira, 3 de julho de 2014

A força de uma ideia.


O sorriso desconcerta. Chega a carregar em si o inesperado diante da rigidez que assume quando a feição se torna séria, quando fala dos obstáculos que impedem o avanço da educação. O mesmo sorriso revela também a índole discreta, de uma dureza cheia de ternura. A atual titular da Secretaria da Educação do Estado (Seduc), Izolda Cela, é movida por desafios. Eles, ao mesmo tempo que a lançam a um reconhecimento que não gosta de ostentar, a conduzem para a prática cada vez mais constante de tornar visível o outro pela crença de que “todos são capazes”. Como um dos gestores à frente da educação municipal de Sobral, foi responsável por um cenário de esperança, antes considerado por ela como “desesperador” na cidade. Izolda vem mostrando que é possível reverter quadros de fracasso quando se estabelecem prioridades e se busca alcançá-los com pulso firme, “sem perder o foco”. A secretária explica como alçou ao âmbito nacional a revolução que o sistema de alfabetização vem provocando no Estado.


O POVO - A sua vida escolar em Sobral foi toda em instituições religiosas. Que influências principais a senhora traz delas?

Izolda - No colégio Santana, fiz as séries iniciais do Ensino Fundamental e depois mudei, na 5ª série, para o colégio Sobralense. Elas representaram para mim exemplos de escolas que funcionavam bem. O Sobralense, por exemplo, era simples, sem luxo, mas era uma escola muito viva. Fazíamos esporte, arte, teatro, coral. Tínhamos vivências de protagonismos em atividades de solidariedade, humanitárias, como ajudar vítimas de enchentes. Tudo, sem nunca esquecer os estudos. Éramos muito cobrados.


OP - A atuação política começou na faculdade de psicologia, em Fortaleza?
Izolda - Não. De jeito nenhum. Eu acompanhava o movimento estudantil, votava, mas nunca assumi cargos em DAs (Diretórios Acadêmicos) ou DCEs (Diretório Central dos estudantes), nunca me interessei por essa atuação.


OP - A escola sempre foi o ambiente de trabalho desejado, depois de formada?

Izolda - Quando terminei psicologia na UFC (Universidade Federal do Ceará), voltei para Sobral e me vinculei a duas atividades: em clínicas, com crianças com dificuldades de aprendizagens, e em escolas. Trabalhei no Sobralense, no acompanhamento da educação infantil. Depois, uma amiga pedagoga e eu montamos uma escola de educação infantil e séries iniciais, a Arco-íris, que funciona até hoje. Como a clínica me exigia viagens, e os filhos ainda estavam pequenos, acabei me vinculando mais à escola. Quando passei para ser professora do curso de pedagogia da UVA, me desliguei da clínica de maneira mais definitiva. Foi nessa época, final da década de 1980, que organizamos os primeiros seminários sobre educação, desenvolvimento infantil e práticas pedagógicas no município.

OP - Foram suas primeiras atuações numa dimensão mais pública?

Izolda - Na verdade, pouco tempo depois eu comecei a militar na área dos conselhos tutelares que veio com a criação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990). Fui da comissão eleitoral que preparou a primeira eleição dos conselheiros tutelares. Era algo que realmente me mobilizava.


OP - Esse foi o momento mais político?
Izolda - Sim. Veio junto com minha atuação na escola Arco-Íris. Depois, já como professora de pedagogia, na UVA, passamos a acompanhar uma escola municipal de ensino infantil e fundamental vinculada ao curso de pedagogia, um Caic. Por decisão do reitor, o curso de pedagogia passou a funcionar dentro do Caic.


OP - Dando apoio pedagógico?

Izolda - Isso. A ideia é que a instituição funcionasse como uma escola de aplicação. Mas nunca funcionou de fato dessa forma. Foi por ela que começamos, pela primeira vez, a ver o que se passava na escola pública. Havia uma desconexão muito grande - e ainda há! - entre a universidade e a realidade da educação pública. Acompanhávamos todo o dia a dia da escola, das professoras. Eu via meninos de 5, 6 anos já com distorção de idade-série. Não sabiam sequer desenhar o nome. Foi nessa escola que eu ouvi algo impressionante de um menino do 1º ano, com 10 anos. Ele reconheceu em mim uma autoridade frente à professora e me falou: “Diga pra essas professoras que copiar essas coisas aí eu já sei. Eu quero é aprender a ler”. Fiquei muito impressionada com essas palavras dele.


OP - E na universidade vocês não sabiam dessa realidade?
Izolda - Não. Não sabíamos o que realmente se passava. Nós não tínhamos instrumental para uma observação mais ampla da rede pública. No momento em que constatamos isso naquela escola, eu fiz uma proposta meio intuitiva que era garantir para os meninos do 1º ano um tempo integral. Então, eles iam em casa almoçar, porque não tinha a menor condição de garantirmos refeição, e retornavam para ter um tempo pedagógico a mais. De segunda a quinta, eles tinham esses dois tempos e na sexta-feira, eu trabalhava somente com as professoras nessa perspectiva de alfabetização, nas competências e processos de leitura e escrita. Mas, sabia, a impressão que nós tínhamos é que aquele problema só acontecia ali; em outra escola, a realidade talvez fosse outra.


OP - Esse foi um embriãozinho do que se tornaria o Programa (Programa de Alfabetização na Idade Certa) estadual?

Izolda - (Risos) Da minha parte, sim. Porque eu fiquei realmente muito impressionada de ver a absoluta falência de um processo escolar. Esse trabalho de formar os professores durou um ano letivo e não teve mais sequência. Depois o curso de pedagogia se retirou de dentro da escola. Não deu para sabermos se houve algum avanço nas crianças.

OP - E quando se iniciou algo que, de fato, apontava mudanças nessa realidade?
Izolda - De 97 a 2000, durante a primeira gestão do Cid (Gomes, atual governador do Ceará) como prefeito, se iniciou a política de financiamento do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério). Isso possibilitou muita coisa. Foi uma luz no fim do túnel. Começou também um movimento de municipalização maior da matrícula do ensino fundamental. Cid foi muito ágil, conseguiu apoio, construiu escolas, melhorou o salário dos professores, reformou, fez concurso, regularizou a merenda escolar, o transporte escolar. Nessa primeira gestão dele, houve um reordenamento de estrutura.


OP - A senhora não tinha nenhum vínculo com o governo nesse primeiro momento?

Izolda - Não. Eu militava nos conselhos tutelares. Mas, olhe, Sobral era terra arrasada. Eu lembro também que a Secretaria da Educação fez um convênio naquela época com o Instituto Ayrton Senna (ONG que pesquisa e produz conhecimentos para melhorar a qualidade da educação no Brasil). Implantaram o Acelera Brasil, em 98, pra fazer com que os meninos que estavam em defasagem conseguissem ganhar ritmo e pudessem ir para frente com mais rigor.


OP - O quadro de defasagem atingia qual porcentagem dos estudantes?
Izolda - Praticamente, 60% dos meninos, em diferentes níveis, estavam em distorção. O Acelera tentou resolver isso, mas o problema é que os meninos não estavam só em distorção, eles estavam analfabetos.
Fonte:Jornal o Povo 09/09/2013